O filme Don`t Look Up, Não olhe para cima, está despertando muito interesse e engajamento nas redes sociais. Vale a pena olhar para esse filme para percebermos um fenômeno de comunicação da indústria cinematográfica, possível somente pela era digital que estamos vivendo. O filme não funciona do ponto de vista da recepção. A narrativa é débil, o roteiro é mal cozido, e a mescla de gêneros não deu liga, apesar das sequências engraçadas e ditas “questionadoras”. Digo isso a partir da minha própria experiência e dos comentários de vários amigos nas minhas redes. Uma pessoa próxima me relatou que começou a ver o filme de noite e dormiu entre os 20 a 30 minutos. Na noite seguinte ela recomeçou de onde parou e dormiu de novo em menos de 30 minutos. No terceiro dia ela sentou para ver de tarde, e por fim terminou o filme, mas não sem dar umas cochiladas. Perguntei se ela achou o filme ruim? Ela disse que não. Achou divertido. E o final? Achou diferente. Aqui começa o fenômeno da recepção: dormiu três vezes mas julga o filme divertido. Outra pessoa disse que achou o trailer interessante, o roteiro parecia bom, mas foi se tornando um filme cansativo à medida que ela assistia. Um filme que não deveria durar 2 horas para ter “aquele final ridículo”. Bastaria 1h30. Muitos disseram "achei ruim, mas divertido". Do lado positivo há uma grande quantidade de pessoas dizendo que o filme é importante pelos debates políticos e ambientais que ele suscita. Que retrata o momento do negacionismo, outro assunto derivado da politização de tudo. Concordo com a necessidade do debate político, que deixarei para outro texto. Neste, quero focar no ponto de vista da arte e da estética. E pelo critério artístico nenhum filme pode ser considerado bom pela temática política que ele aborda. Assim como não existe temática tabu para o cinema de hoje, não existe temática que garanta a qualidade de um filme.
E se a recepção de Não olhe para cima fosse nas salas de cinema? Acredito que quem dormiu não voltaria em outra sessão para terminar de ver o filme. Quem se sentisse entediado aos 25 minutos, aos 45 ou em qualquer momento do filme, sem a possibilidade de dar pausa para ver depois, abandonaria a sala do cinema. E não voltaria mais. O engajamento boca a boca seria muito mais negativo do que positivo para o filme. O mau funcionamento da narrativa se evidenciaria na fruição dos receptores. Todas essas questões estão amenizadas pelo uso do controle remoto no serviço de streaming da Netflix. Como pausar, espantar o tédio e voltar, ou dormir e voltar no dia seguinte. A indústria não é ingênua quanto aos padrões de recepção. Usa o sex appeal de seus atores para engajar o filme com a maior quantidade de público possível. Hollywood sempre fez isso, como demonstra Edgar Morin na sua análise da cultura de massa. Essa foi uma das principais críticas do pessoal da Nouvelle Vague em relação à Hollywood. “Isso soa falso”, dizia Truffaut, que chegou a refazer um filme de Hollywood porque condenou o uso de Ingrid Bergman como uma pobre moça carvoeira. Mas Não olhe para cima vai além da exploração do sex appeal de Leonardo Dicaprio e Jennifer Lawrence, por exemplo. Explopra-se também o engajamento político dos atores Dicaprio e Meryl Streep fora das telas. Principalmente os temas ligados à defesa do meio ambiente, nos quais o ator se tornou um ativista. Por essa lógica, vemos a toda hora os atores dando entrevistas de propaganda e defesa do filme, vinculando-o sempre com a necessidade de salvarmos o planeta. Não devemos negar a preocupação real dos atores, diretores e produtores do filme com as causas reais, mas também não devemos negar a estratégia de vinculação comercial às temáticas.
A intenção de engajamento político e comercial fica evidente quando lemos as primeiras notícias sobre o roteiro do filme. Ele já estava pronto antes da pandemia. Na versão que seria filmada pretendia-se chamar a atenção para problemas ambientais em diversas esferas do planeta. Com a chegada da pandemia, e a politização do tema, até o chamado “negacionismo da ciência”, resolveram de última hora introduzir o cometa no roteiro. Um cometa que vem direto na rota de colisão com a Terra. Não é difícil imaginar que a inspiração para essa introdução da ficção científica seria o Flash Gordon. Basta lembrarmos de Flash Gordon no Planeta Mongo. O protótipo da ficção científica, no qual não um asteroide, mas um planeta habitado, e comandado pelo terrível Dr. Ming, está vindo para destruir a terra. Os Estados Unidos mandam o herói Flash Gordon para desviá-lo de seu curso. O herói cômico e fanfarrão que a presidente dos Estados Unidos e a Nasa escolhem para mandar de encontro ao asteroide é uma homenagem clara ao Flash Gordon. Mas enquanto Flash Gordon luta, vive os conflitos do roteiro, e a narrativa chega a um clímax, cujo desfecho é a vitória de Flash Gordon, o herói de Não olhe para cima nem chega a lutar no conflito que foi armado para ele, com foguetes, drones equipados com bombas nucleares e outros aparatos. O herói Flash Gordon oferece o sentimento de vitória por procuração a todos os terráqueos receptores. A sequência do soldado de Não olhe para cima decepciona o receptor porque lhe armaram um conflito, que logo na sequência foi apagado pela própria narrativa. Mas quem disse que o receptor não pode ser contrariado?
O receptor pode e deve ser contrariado. Fugir da obviedade da narrativa sempre parece inteligente. Mas o cinema comercial fracassa se contrariar o receptor em todas as sequências de todos os atos. Até aos 25 minutos o filme mantém o interesse do receptor amador. Estamos diante de um drama. O drama de dois cientistas que descobriram um asteroide em rota de colisão com a Terra em aproximadamente 6 meses. Ainda que tudo se passe muito morosamente, temos a expectativa que aos 30 minutos teremos um ponto de virada. Uma sacudida no receptor. Algo que não acontece porque o receptor ainda não chegou a sentir o medo dos personagens. A essa altura já estaríamos morrendo de medo junto aos personagens de Guerra dos mundos, pensando em ajudar o personagem principal a salvar sua família, para citar outro filme comercial de ficção cientifica. Mesmo de forma inconsciente, o receptor espera um ponto de virada perto dos 30 minutos. Hollywood nos acostumou assim. É o padrão para filmes comerciais, que são armados em 3 atos, distribuídos dentro de um espaço de tempo médio de 1h30min. a 2 horas de duração. Mas quando chegamos aos 45 minutos percebemos que o drama é abandonado de vez em favor da comédia. Tudo bem, vamos para a comédia então. Mas a passagem não é bem feita. O nível de atuação dos atores, principalmente da estressada estudante que descobriu o asteroide, sempre estressada, parece fora do tom da narrativa. O tom da atuação de Dicaprio, mesmo sendo um ator comprovadamente competente, também não ajuda a convencer que existe um perigo iminente de destruição da vida na Terra. Parece que fizeram uma má escolha para o nível de atuação em várias cenas, o que compromete a narrativa. A atuação mais acertada é a de Cate Blanchett. Ela segura um nível de atuação compatível com o seu papel e com a narrativa do filme, desde começo até fim de suas cenas. Merecia uma indicação para o prêmio de melhor atriz coadjuvante, já que o filme é uma aposta da Netflix para o próximo Óscar.
Mas é preciso entender
que o filme é uma sátira política e social. Sim, entendemos a proposta.
Lembrando que o Decamerão, de Boccaccio, também é sátira social, comédia dos
costumes. E também retrata uma época de pandemia, em que eles
estão de quarentena. Mas as narrativas estão contadas num tom acertado com os
temas, por isso o livro sobrevive. É possível começar uma narrativa com um drama e
passar para a comédia? Sim. O dramaturgo Lope de Vega já criou a Tragicomedia, durante o
Siglo de Oro espanhol. Não olhe para cima funciona no engajamento estratégico que
a Netflix vem sabendo fazer nas redes sociais, mas não funciona enquanto filme
porque não soube mesclar os gêneros: drama, comédia, sátira política, ficção científica,
e pitadas de surrealismo. Sem contar que a última parte, na qual o monstro come
a personagem, acentua o kitsch no filme. Todas as cenas do final são claramente
kitsch. Essa particularidade do kitsch ajuda a entender a fala despretensiosa de
muitos receptores: “ruim, mas divertido”. Reza uma lenda sobre o cinema, todos podem verificar se ela guarda alguma relação com a realidade, na qual se diz que quando o roteiro não segura a narrativa, ou seja, a história não é boa, então o público começa a procurar defeitos de continuidade, falar da interpretação dos atores, criticar o figurino ou encontrar erros na fotografia. Enfim, sobram críticas para todos os setores. Particularidades que ficariam encobertas na boa história. Também sobram elogios filosóficas e sociológicos para a temática, elogios estéticos para certas cenas, e comentários apaixonados para determinados frames. É exatamente o que está acontecendo com Não olhe para cima. Vemos os artistas do filme defendendo a própria obra na mídia, e os receptores se engajando nas redes sociais e plataformas como Youtube, onde surgem vários vídeos de comentários do filme? O fenômeno de comunicação se dá exatamente sobre o filme. E não a partir do filme. Estou interessado em ver a sobrevida desse filme, e o interesse do receptor em médio e longo prazo.